Psicologia, Religião e Laicidade: a Psicologia como elemento de capacitação em cursos de formação religiosa?

Categoria(s):  Notícias, PSICOLOGIA EM DEBATE   Postado em: 22/09/2015 às 17:19

No bojo dos debates nacionais sobre a importância do princípio da Laicidade na atuação da (o) psicóloga (o), o CRP-RJ vem acompanhando com preocupação a proliferação de alguns cursos – nas modalidades presencial e à distância – de bacharelado, mestrado, doutorado e pós-doutorado em “Psicologia Pastoral”. Estes cursos, promovidos por instituições ligadas a determinados setores religiosos, são oferecidos nos mesmos moldes que outros cursos de conteúdo puramente religiosa, tais como Aconselhamento Cristão, Louvor e Adoração, Estudos Bíblicos, entre outros.

Quais são as implicações éticas e técnicas dessa utilização e propagação do conhecimento da Psicologia baseadas em fundamentos cristãos/religiosos?

Para analisar essa questão, é preciso, inicialmente, situar os marcos legais que regem não apenas o exercício profissional da Psicologia em nosso país como também o credenciamento de cursos de formação e concessão de títulos deles advindos pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC).

A profissão de psicóloga (o) foi regulamentada pela Lei nº4.119, de 1962. Por essa normativa, ainda hoje em vigor, somente as (os) profissionais diplomadas (os) em instituições de Ensino Superior credenciadas pelo MEC podem requerer o registro profissional e, assim, exercer a profissão de psicóloga (o). A obrigatoriedade da inscrição no Conselho Regional de Psicologia da área de atuação para o exercício profissional foi instituída pela Lei nº 5.766, de 1971, que criou o Sistema Conselhos de Psicologia.

Com relação ao ensino de Psicologia, os cursos de graduação válidos para fins de exercício profissional têm de ser autorizados previamente pelo MEC, conforme estabelece a Resolução CNE/CES nº 5, de 15 de março de 2011; já os cursos de pós-graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado podem ser oferecidos somente por instituições de Ensino Superior validadas pelo MEC.

“A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, instância máxima da Educação no Brasil, estabelece que o ensino de Psicologia é livre, podendo ser oferecido por qualquer pessoa e/ou instituição. Entretanto, se esse curso não estiver devidamente validado pelo MEC, ele não pode oferecer diplomação e titulação àqueles que o frequentam”, explica a psicóloga e supervisora técnica da Comissão de Orientação e Fiscalização (COF) do CRP-RJ, Zarlete Faria (CRP 05/15377).

“Esses cursos de Psicologia Cristã e/ou Pastoral não podem, portanto, oferecer titulação de bacharel, tampouco equivalem a pós-graduação, mestrado, doutorado ou pós-doutorado. Da mesma forma, as instituições que oferecem esses cursos não podem propagandear que as pessoas que os fizerem poderão exercer a profissão de Psicologia nem se intitular psicóloga (o)”, argumenta Zarlete.

Laicidade e Psicologia

Essa problemática, na verdade, enreda-se em uma discussão mais ampla que tem ganhado uma importante dimensão não apenas na Psicologia e demais profissões da Saúde como também nas diversas esferas de nossa sociedade. É importante destacar que a defesa do princípio da laicidade não representa uma mordaça às diversas manifestações e expressões religiosas. Pelo contrário, a laicidade é o princípio constitucional que assegura o direito à liberdade de expressão, de culto e de dpráticas em geral de todas as religiões e credos.

Conforme enfatiza o psicólogo, conselheiro do CRP-RJ e representante no Grupo de Trabalho do CFP sobre Psicologia e Laicidade, José Henrique Lobato Vianna (CRP 05/18767), “quando falamos sobre laicidade, não estamos impondo um afastamento dos psicólogos de suas bases religiosas. Vivemos num Estado democrático que enfatiza a laicidade como condição básica de entendimento entre as religiões. O Estado deve ser laico para poder comportar todos os credos religiosos”.

Nesse sentido, José Henrique chama atenção para as fronteiras éticas, fundamentadas pelo Código de Ética Profissional, que a (o) profissional psicóloga (o) deve respeitar. “O psicólogo que, porventura, é religioso, de qualquer ramo das religiões presentes em nosso país, deve basear/pautar seu fazer tendo por direção o Código de Ética da profissão, pois é nele que encontramos norte para nossas atuações”, defende.

Roseli Goffman (CRP 05/2499), psicóloga, conselheira do CFP de 2008 a 2013 e pesquisadora na área da Comunicação e Esquizoanálise, corrobora que a atuação psi, independente de seu espaço de inserção e do credo religioso da (o) psicóloga (o), deve ser pautada pelo Código de Ética do Psicólogo. Segundo ela, “estamos embasados pelos artigos 1 e 2 dos Princípios Fundamentais, art.1 alínea C, art.2 alínea B e F e art.20 alíneas C, E e H. Esse conjunto de artigos, em suma, colocam que a prática do psicólogo deve estar sempre subordinada aos conhecimentos e práticas regulamentadas da profissão. Além disso, o psicólogo não pode levar à indução de nenhuma natureza relativa à religião, orientação sexual ou qualquer outra que desrespeite a liberdade individual”.

“Não cabe ao psicólogo fazer julgamento moral, baseada em prévias convicções religiosas”, acrescenta. “Na verdade, essa questão aparece em outras práticas profissionais que não só a do psicólogo, por exemplo, o médico que se nega a atender uma mulher com complicação em decorrência de aborto”.

Como podemos perceber, essa dimensão ética da laicidade na atuação da (o) psicóloga (o) é muito importante e deve ser observada pelas (o) profissionais. O que está em debate não é o fato de a (o) psicóloga (o) ter ou não uma religião: a questão a ser considerada é a fronteira ética que essa temática impõe e como essa (e) profissional lida com ela em seu cotidiano de atuação.

“A fronteira entre religião e os saberes que se pretendem científicos, como a Psicologia, não pode ser ultrapassada, pois as respostas que a religião traz não são as mesmas trazidas pela ciência”, argumenta Roseli. “No caso específico da Psicologia, devemos considerar as questões pertinentes à pessoa que atendemos. Não estou dizendo, com isso, que o psicólogo não possa ter sua religião. É claro que pode, já que este direito constitucional é assegurado a qualquer indivíduo. Porém, não podemos confundir uma escolha de âmbito privado com a prática profissional, que é de âmbito público”.

Portanto, a transgressão desse limiar que separa uma prática privada – no caso, a religião – de uma prática profissional de esfera pública – como é o caso da Psicologia – pode acarretar sérias consequências, comprometendo a atuação da (o) psicóloga (o) e seu compromisso ético e técnico para com o sujeito atendido, qualquer que seja o espaço e o contexto desse atendimento.

“No CRP-RJ, chegam diversas denúncias referentes a situações em que o psicólogo apresenta em seus anúncios e/ou discursos o tema da religião como algo preponderante, beirando, podemos dizer, quase a uma tentativa de conversão religiosa. Essa questão não pode passar despercebida, pois nossa atuação tem limites e devemos atentar para eles”, destaca José Henrique. “O que estamos discutindo aqui não é a religião do psicólogo, mas seus limites profissionais no trato com aquele que o procura e pede seu trabalho. A questão aqui não é deslegitimar a crença religiosa do profissional em Psicologia, mas produzir o debate onde pode/deve ser apresentado tal depoimento ou ideário e onde não”.