História da Saúde Pública no Brasil e o desmantelamento do SUS são debatidos no CRP-RJ

Categoria(s):  DIALOGANDO, Notícias, SAÚDE   Postado em: 20/09/2016 às 16:37

O desmantelamento do SUS é “o desenho de um Brasil onde não caberão todos os brasileiros” (Emerson Merhy)

Na noite da última quinta-feira (15/09), o Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro realizou mais uma edição do “Dialogando com o CRP-RJ”, que reuniu psicólogas(os) para debater “A história da Saúde Pública no Brasil e o desmantelamento do SUS”, tema do evento, que contou com palestras dos professores Emerson Merhy e Rita Louzada.

Antes de convidar os palestrantes a comporem a mesa, a presidente do CRP-RJ Janne Calhau Mourão (CRP 05/1608) falou sobre a relevância do tema para a categoria. “Esse tema traz à baila a palavra ‘desmantelamento’. Nós estamos vivendo uma época de desmantelamentos muito sérios, de conquistas de movimentos sociais, de grupos e segmentos que lutaram pela garantia de direitos”, disse a psicóloga, que afirmou ainda que “a Psicologia tem muito a ver com essas temáticas que serão aqui tratadas hoje”.

A primeira explanação foi de Emerson Merhy, que é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências do Cuidado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFF) e livre-docente aposentado da Universidade de Campinas (Unicamp). É também reconhecido por sua longa trajetória de luta em defesa do caráter público da saúde no país, com mais de 40 anos dedicados ao ensino e à implementação de formas de produção de relações de cuidado e de gestão nos serviços de saúde.

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Da esq. para dir.: Rita Louzada, Janne Calhau e Emerson Merhy

“A narrativa sobre a vida real vem sendo muito falseada”, introduziu o professor, para quem o tema em questão “é vital” e espaços de reflexão sobre o mesmo são necessários, sobretudo porque, segundo ele, há no Brasil um “monopólio midiático da narrativa”. Ele associou a temática do desmantelamento ao oligopólio midiático existente no país, cuja “sociedade carece de fontes variadas [de informação] que permitam às pessoas estabelecer visões distintas sobre as questões”.

Segundo Merhy, a Saúde Pública emerge no século XVII como um campo de políticas que carrega a importante “marca de fazer a gestão, a regulação e o controle da vida das populações”. Ele criticou a visão das políticas de saúde cujas ações se baseiam na discriminação entre vidas que valem e vidas que não valem a pena. “Essa marca da saúde pública será questionada por toda uma geração, que vai advogar uma outra ideia, e esta outra ideia é que está na base do Sistema Único de Saúde (SUS)”, disse.

“No campo do SUS, a gente inventa todas as novas leis. A gente rompe todas as formas de organizações anteriores, tentando construir um modelo de organização único para a política de saúde”, afirmou o professor, que citou o artigo 196 da Constituição de 1988, que “já parte do princípio de que a saúde é um direito da sociedade, um direito dos indivíduos e um dever do Estado, e, nesse sentido, todas as vidas são eticamente equivalentes”, segundo ele.

“Isso é uma ruptura com a lógica discriminatória da saúde pública, uma aposta de que é possível fazer um outro país. Imediatamente, quando a gente consegue conquistar esse avanço constitucional, o SUS começa a sofrer pancadas e oposições brutais na mídia monopolizada”, enfatizou Merhy, que voltou a criticar a abordagem da mídia hegemônica sobre a saúde pública. “Se vocês frequentarem os jornais da Globo e forem acompanhando, nos anos 80 e 90, vocês verão a Globo construindo a narrativa de que o que é público não presta, de que só presta o que é privado”, disse.

“Essa mídia privatista tem um compromisso com o setor do mercado da saúde, que advoga que a saúde não é um direito, que a saúde não é um patrimônio da sociedade, que a saúde é um bem individual que você adquire conforme os produtos que você compra no mercado, então cada um que cuide da sua”, destacou.

Merhy fez ainda uma crítica mordaz ao atual ministro da Saúde, Ricardo Barros. “O discurso do atual ministro da Saúde aponta para a destruição do SUS e o apoio aos planos de saúde pobres para pobres. É como se ele dissesse para nós algo que já vinha da Ditadura que a gente derrotou e eles estão reabilitando: ‘se você tem um cheque de uma estrela, você terá uma saúde uma estrela, e se tem um cheque cinco estrelas, terá um saúde cinco estrelas’”, indignou-se, fazendo referência ao modelo meritocrático norte-americano, baseado em “vencedores” e “fracassados”.

“Esse desmantelamento é não só uma perda histórica de grandes conquistas de movimentos sociais, de setores intelectuais, trabalhadores e militantes, de uma sociedade mais democrática, mais justa, mais equitativa, mas será também o desenho de um Brasil onde não caberão todos os brasileiros. É uma situação dramática e o Sistema Único de Saúde é um bom indicador para analisarmos a gravidade do que viveremos, porque, das políticas públicas pós-ditadura, o SUS é a que mais aprofundou a ideia de que nós podíamos ter um Brasil de um outro jeito, que não era o da Casa Grande e da Senzala”, encerrou.

Compromisso social da Psicologia

A professora Rita Louzada, do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, introduziu sua apresentação historicizando a relação da psicologia com questões sociais e, por consequência, com políticas públicas. “A história da psicologia no Brasil se confunde com a própria história do país, uma vez que as novas atuações de psicólogos nos levam a participar de discussões sobre quais políticas públicas buscamos”, disse ela, que é doutora em Saúde Mental pelo IPUB/UFRJ.

“A atuação dos psicólogos esteve restrita, durante muito tempo, à psicologia aplicada, executada em consultórios particulares, escolas ou empresas, e o acesso a essa psicologia era restrito àqueles que dispunham de recursos para pagar por isso. Contudo, especialmente nos últimos 20 e poucos anos, a psicologia propõe um novo paradigma para a atuação dos psicólogos e questões sociais, identificando claramente o papel do psicólogo com a realidade brasileira. Surge assim o conceito de compromisso social da psicologia, isto é, uma prática comprometida com a realidade social do país. Dessa maneira, a psicologia se liga necessariamente a políticas públicas”, introduziu Louzada.

A presença da Psicologia brasileira nas instituições sociais, segundo a professora, ocorreu no século passado, mas de forma secundária, “junto à psiquiatria, ainda de maneira auxiliar, numa perspectiva patologizante”. “Aos poucos, era necessária uma psicologia comprometida com as mudanças sociais, propostas por psicologias que alguns chamam de comunitárias, além daquelas trazidas pelo processo de democratização do país, em oposição a um Estado autoritário de políticas assistencialistas”, contextualizou.img_3536

A professora falou também sobre o Movimento da Reforma Sanitária e a elaboração do SUS, sobre o papel de psicólogos, docentes e estudantes de psicologia que “se engajaram em lutas por democracia e pelo direito à saúde”. “O compromisso social da psicologia também leva a uma importante discussão em nosso país pelo fim dos manicômios, a Reforma Psiquiátrica, compreendendo que a loucura é um fato social e que os melhores resultados dos tratamentos não estão em manicômios, e sim no convívio social, rompendo a exclusão e propondo a inserção desses pacientes no contexto social e familiar, com acompanhamento do Estado e por meio de ampla rede de atenção”, disse.

A atuação de profissionais de psicologia e outros atores sociais nesse sentido tem levado, segundo Louzada, a uma proposição de políticas públicas com foco nos direitos humanos. Após mencionar conquistas sociais das últimas décadas, Louzada finalizou sua explanação com críticas ao atual governo: “Estamos vivendo um forte ataque a tudo isso que conseguimos construir. Todos os resultados dessas conquistas, a luta pelo direito à saúde e a estruturação do SUS, sofrem com ações rápidas e desastrosas dos grupos que exercem hoje o poder no país, que não foram eleitos e que vêm desmontando todos os direitos sociais conquistados. Temos ataques frontais aos direitos sociais e, por extensão, à saúde da população”.

Ela também criticou o fato de que “decisões desastrosas relativas a financiamento do Sistema, à forma de organização, relações do SUS com planos de saúde e entidades filantrópicas, vêm sendo reformatadas fora das bases legais que regem o próprio Sistema”, o que também significa “um ataque frontal aos direitos dos trabalhadores da saúde, com precarização e flexibilização das relações de trabalho, desmontando conquistas históricas”.

Diante das questões que colocou, a professora destacou a importância da luta em defesa de modelos de gestão não privatizantes e outros aspectos que valorizem os trabalhadores do SUS, e concluiu sua fala com uma mensagem de luta. “O SUS não foi concessão de qualquer governo, é conquista social, resultado de luta política. Nós vamos seguir lutando, resistindo aos ataques. Cada um de nós, que conhece e valoriza essa história, que sabe desse projeto generoso da esquerda brasileira, que identifica a diferença que o SUS faz para inúmeros usuários desse Brasil afora, seguirá lutando, e seguiremos lutando contra o golpe dado contra o país”, encerrou.