CRP-RJ: Manifesto diante da Resolução 3/2020 Sisnad: A internação forçada de adolescentes e as novas roupagens do manicômio

Categoria(s):  DESTAQUE DA SEMANA, DIREITOS HUMANOS, NOTAS, Notícias, POLÍTICAS PÚBLICAS, SAÚDE   Postado em: 01/09/2020 às 18:45

WhatsApp Image 2020-09-01 at 16.53.41

O atual ano (2020) está sendo marcado por uma pandemia que assolou o mundo. O surto de doença provocado pelo novo coronavírus (COVID-19) vem, progressivamente, deixando milhares de vítimas em todos os territórios mundiais. A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a pandemia estabelece uma Emergência de Saúde Pública a Nível Internacional. Segundo a folha informativa-COVID-19 da Organização Pan-Americada da Saúde (OPAS), neste momento “foram confirmados no mundo 18.354.342 casos de COVID-19 e 696.147 mortes até o dia 5 de agosto de 2020”.

No Brasil, a pandemia cada vez mais toma proporções desmedidas. A forma funesta com que o governo brasileiro lida com a gestão sanitária e o enfrentamento da doença, operando trocas sucessivos na direção do Ministério da Saúde, promovendo campanhas governamentais criminosas que desincentivam as medidas de distanciamento social, que entre outras coisas, através de um discurso ideológico, agrava nossas condições pela não-crença no vírus por uma parcela da população brasileira, dificultando, portanto, as diligências sanitárias, nos coloca como um dos epicentros da expansão da doença. Hoje, lamentavelmente, já atingimos a marca de 97.256 óbitos (Ministério da Saúde).

Em meio a todo esse caos, “se já não bastasse”, o governo brasileiro dá origem a outros espectros em outras instâncias: No dia 15 de julho de 2020, de forma não nítida – o que é comum ao atual governo-, foi publicada a Resolução nª1, que revoga a Resolução 03/GSIPR/CH/CONAD de 27 de outubro de 2005, da Política Nacional sobre Drogas. E recentemente, em 28 de julho de 2020 é publicada a Resolução nª3 que prevê e regulamenta, no âmbito do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas-Sisnad, a internação de crianças e adolescentes que se encontram em vicissitudes decorrentes da dependência de álcool e outras drogas, em Comunidades Terapêuticas.

À vista de medidas como essa, que denotam um retrocesso nas políticas saúde mental brasilera, também demonstram as reais intenções do atual governo, dado que, desde que assumiram, permanentemente vinham publicando resoluções no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD), das quais não possuíam força de lei, com a intenção de revogar à política anterior, que era constituída a partir da lógica da redução de danos, não tendo como prioridade projetos terapêuticos que visam a abstinência, as internações em Comunidades Terapêuticas, e sendo divergente a qualquer tipo de projetos de exclusão e segregação de determinada camada da sociedade.

A Resolução do CONAD de nª3 aponta que serão aceitos jovens com idade entre 12 a 18 anos incompletos que apresentem dependência química e achem-se em circunstância de vulnerabilidade, necessitando de proteção e apoio social. A Resolução ainda estabelece que a adesão do adolescente suceda em condição voluntária e com autorização prévia, por escrito, de um dos pais ou responsável legal (Art. 2, § 4 ) – os desígnios de exclusão já se evidenciam nesse trecho-. Ainda neste capítulo, exprime-se que cada criança ou adolescente terá um plano individual de acolhimento, construído com a participação de um dos responsáveis, além de projetos terapêuticos e pedagógicos específicos, que incluam o acesso à educação, presencial ou a distância. Aqui fazemos uma pausa, e relembrando a leitura do Relatório Nacional de Inspeção das Comunidades Terapêuticas (2018), realizado pelo Conselho Federal de Psicologia, uma questão nos suscita: podemos assegurar que isso será realizado?

Além do mais, a Resolução nº também reitera que a Comunidade Terapêutica terá de oferecer aos adolescentes ambiente familiar, propício à formação de vínculos, dotado de instalações exclusivas e adequadas, de modo a preservar a sua segurança e bem-estar, e que está rigorosamente vedada qualquer forma de isolamento físico. Contudo, isto contradiz a necessidade de internação e autorização por escrito e também nos leva a questionar como será exercido esse direito de ir e vir, previsto em Constituição (1988), sendo que a maioria das Comunidades Terapêuticas se localizam em lugares ermos e de difícil acesso (CFP, 2018). Ademais, é dito que a interrupção do acolhimento poderá se dar a qualquer momento, desde que observados os mesmos requisitos previstos para o início do tratamento: “No caso de acolhido adolescente completar 18 (dezoito) anos, o acolhimento em comunidade terapêutica contará com a sua adesão voluntária individual, podendo ser interrompido a qualquer momento, observadas as mesmas condições” ((Art. 2, § 5). Caso o jovem complete 18 anos sob tutela da Comunidade Terapêutica, ele terá o direito de permanecer, se assim desejar. Em tal caso, outras questões nos provocam: Se pode ser interrompido a qualquer momento, porque a necessidade de autorização de internação? Quais serão os requisitos e/ou condições dessa avaliação? O que se espera de instituições totais e asilares (GOFFMAN, 1961; CFP, 2018) como essas, onde supostamente o saber-poder está na mãos de alguns que tem a certeza de conhecerem o que é melhor para vidas que não são suas?

A publicação da Resolução nº3 do CONAD regulamenta ainda uma outra resolução de 2015, como afirma Quirino Cordeiro, secretário Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas do Ministério da Cidadania (Senapred). Em matéria publicada no site do Ministério da Cidadania (Governo Federal), o secretário afirmou:

Finalmente, pudemos preencher uma lacuna no sistema de atendimento ao permitir que as vítimas mais vulneráveis ao álcool e a outras drogas, os adolescentes, tenham a possibilidade de acesso às comunidades terapêuticas, que são uma alternativa efetiva de recuperação para aqueles que sofrem com as consequências extremamente danosas do uso, do abuso e da dependência das drogas em geral (https://www.gov.br/cidadania/pt-br/noticias-e-conteudos/desenvolvimento-social/noticias-desenvolvimento-social/resolucao-do-governo-federal-regulamenta-o-acolhimento-de-jovens-por-comunidades-terapeuticas)

Todavia, esses já não são deveres do Estado previstos na Constituição e no ECA?

Quirino ainda diz que essa decisão representa uma grande vitória no âmbito do tratamento e prevenção, posto que, segundo ele:

Embora essas comunidades tenham um histórico de mais de 50 anos de atuação no Brasil, devidamente legalizadas, sujeitas a um rígido regramento para o seu funcionamento e à ampla fiscalização, as comunidades terapêuticas encontravam-se inacessíveis ao público adolescente. Isso, sem dúvida alguma, prejudica esse segmento vulnerável da população e seus familiares (http://mds.gov.br/obid/artigos/resolucao-que-regulamenta-o-tratamento-de-adolescentes-com-dependencia-quimica-em-comunidades-terapeuticas-e-aprovada-pelo-conselho-nacional-de-politicas-sobre-drogas-conad).

Diante de enunciados como estes, inevitavelmente novas questões/inquietações nos sucitam: Por que ao invés de investimentos de tempo e verba na retirando de pessoas de seu convívio familiar e social, não debruça-se sobre políticas de emprego, de distribuição de renda, de valorização da saúde, por exemplo? Por que não inclinar-se a fatores de reconhecimento e compreensão das dimensões históricas, culturais e geográficas dos indivíduos, sejam eles crianças, adolescente ou adultos, que estão fazendo uso prejudicial de drogas? Além dessas, a uma outra questão nos é muita cara: Quando se fala em “necessidade de proteção e apoio social”, temos que avaliar a quem se está querendo proteger, ou melhor dizendo, dentro de um discurso moralista, permeado de preconceitos e rótulos, ao encarcerar a nossa juventude, a quem é destinada a proteção?

Seguindo a característica da política atual o CONAD é contrário às recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), feitas à Comissão de Narcóticos da Organização das Nações Unidas (ONU), no que se refere a flexibilização e redução do controle internacional sobre a cannabis e seus derivados. Mais uma vez Quirino explica que essa decisão é importante, dado que define a posição que o Brasil tomará em dezembro deste ano, quando a Comissão de Narcóticos da ONU votar o tema. Ele ainda ressalta a importância da realização de rigorosos testes científicos para qualquer eventual uso terapêutico da cannabis, e diz que

(…) não é mais possível que essa situação seja explorada de maneira ideológica por grupos que querem liberar a cannabis no Brasil. Não se pode aceitar que a sociedade seja enganada por grupos de interesse que querem explorar um eventual mercado da cannabis. O uso terapêutico restrito de uma única molécula não pode ser usado como ponta de lança para a liberação dessa droga no país (https://freemind.com.br/blog/brasil-votara-contra-reducao-controle-da-cannabis/)

Quando diz “grupos de interesse” também devemos adotar um movimento de analisar o seu grupo e quais os interesses que os mesmo tem ao desejarem retomar uma política de exclusão que foi transformada a diversas mãos no contexto brasileiro.

A Resolução traz em seu arranjo numerosas contradições factuais quando consideramos as sínteses analíticas expostas no Relatório de Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas (CFP, 2018). Por exemplo, a Resolução considera a “necessidade de prever garantias aos adolescentes acolhidos, com vistas a preservar seus direitos e evitar a sua institucionalização”. Não seria a internação em Comunidades Terapêuticas uma institucionalização?

Em entrevista a revista RADIS (2004), Paulo Amarante ao falar sobre processo de superação do modelo psiquiátrico afirma que, a ruptura com o modelo hospitalar-asilar-manicomial, “está em processo razoável, embora hoje haja novas formas de institucionalização”, e localiza fundamentalmente as Comunidades Terapêuticas dentro dessa lógica. As sínteses analíticas do relatório citado acima oferecem argumentos que sustentam o apontamento do entrevistado, e ainda denunciam o caráter asilar dessas instituições (Comunidades Terapêuticas).

De acordo com o Conselho Federal de Psicologia (2018, p.56) o caráter asilar é estabelecido por duas vias:

  1. a) a ausência de recursos para oferecer assistência integral, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros; e b) a não garantia dos direitos das pessoas com transtornos mentais, enumerados, na própria lei, como acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, pelos meios menos invasivos e preferencialmente em serviços comunitários, com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando recuperação pela inserção na família, trabalho e comunidade, protegido de abuso e exploração, com direito à presença médica, acesso a meios de comunicação, entre outros.

 

Os dados e/ou elementos levantadas pelas inspeções nas comunidades terapêuticas apontam sem sombra de dúvidas as características asilares dessas instituições. A organização das comunidades como espaços de isolamento passa por um agrupamento de práticas e particularidades que, individual e conjuntamente, outorgam limitações a livre circulação das pessoas e convivência com o mundo exterior. A incomunicabilidade e visitas restritas, o difícil acesso, muros, portões, trancas, restrições a saídas, a retenção de documentos ou dinheiro e a violação de sigilo de correspondência e de acesso a meios de comunicação, todas essas fazem parte das configurações asilares encontradas (CFP, 2018).

As Comunidades Terapêuticas são instituições totais. Já que, como nos explica Goffman (1961), uma instituição total defini-se como um lugar de estância e labuta onde um amplo número de indivíduos com situação similar, separados da sociedade por um largo período de tempo, levam uma vida limitada, fechada e rigorosamente administrada. Para Basaglia (1924-2010), o que caracteriza essas instituições a qual ele chamará de instituições da violência, é, precisamente, a violência, que é “exercida por quem está com a faca e o queijo na mão sobre quem se vê irremediavelmente subjugado” p.93. Isto é, são instituições assentadas em uma segmentação explícita dos papéis:

(…) Isto significa que o que caracteriza as instituições é a clara divisão entre quem dispõe e quem não dispõe do poder, de onde se pode deduzir que a subdivisão dos papéis representa a relação de abuso e violência entre poder e não-poder, que se transforma na exclusão do não-poder por parte do poder: a violência e a exclusão estão na base de qualquer relação que se instaure em nossa sociedade (Basaglia, 2010, p.93 – grifo nosso).

Tais relações de poder estabelecidas nas instituições asilares destroem o doente mental, afirma o mesmo autor. O resultado, portanto, é o mesmo em relação as configurações violentas das comunidades terapêuticas, como comprovado no Relatório de Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas.

Por fim, as reverberações pessoais ao escrever este manifesto, nos conduzem a atentar que a Resolução nº3 do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) é, sobretudo, uma afronta as políticas brasileiras de saúde mental, construída factualmente numa trama histórica de confronto e transformação de uma realidade dramática e opressora (BASAGLIA, 1985), tendo como principais protagonistas, os gestores do Sistema Único de Saúde (SUS), os trabalhadores em saúde e os usuários do serviço de saúde mental e seus familiares, estabelecendo narrativas de luta, dentro de um âmbito democrático e participativo na conjuntura das políticas públicas de saúde no Brasil (OLIVEIRA, MARTINHAGO E MORAES, 2009). Porquanto, com um discurso disfarçado de cuidado, sem evidências científicas, a publicação dessas Resoluções revelam interesses morais e econômicos, transformando em lei o que defendem: a limpeza étnica das classes vulneráveis, defendendo uma disputa de poder.
Eixo de Políticas sobre Álcool e Outras Drogas – EPAD

Comissão de Direitos Humanos – CRP RJ