NOTA DE REPÚDIO

Categoria(s):  DESTAQUE DA SEMANA, DIREITOS HUMANOS, NOTAS, Notícias, Últimas Notícias   Postado em: 24/06/2022 às 18:39

O Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro vem a público manifestar seu posicionamento de repúdio em relação a decisão judicial de manutenção da gestação de uma criança de onze anos vítima de estupro, sendo negado o direito ao aborto legal.

O Brasil possui diretrizes para o atendimento à infância e juventude referenciadas a marcos legais nacionais e internacionais. Como país signatário da Convenção sobre os Direitos de Crianças e Adolescentes (CDC) de 1989, seus princípios foram incorporados à Constituição
Federal (CF) de 1988 (BRASIL, 1988), e embasaram o Estatuto da Criança e do Adolescentes (ECA), de 1990. A partir desse quadro o Brasil demonstra seu compromisso e responsabilidade de efetivar a proteção à população infantojuvenil, com prioridade absoluta, conforme destaca o ECA.

O reconhecimento da infância e adolescência como etapas peculiares do desenvolvimento humano coloca esses sujeitos sob proteção da família, da sociedade e do Estado, conforme afirmado no artigo 4º do ECA. Sendo explicitada a proteção também no artigo 5º: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.”

Formaliza-se a Doutrina da Proteção Integral, a criança e o adolescente como prioridades absolutas na legislação e nas políticas públicas, levando ao poder público a responsabilidade de fomentar o Sistema de Garantia de Direitos como um conjunto de atores responsáveis pela efetivação da proteção apontada na legislação vigente.

A Psicologia atua nos diversos equipamentos e serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), no Sistema Único de Assistência Social (SUAS), no Conselho Tutelar, além de compor equipes multidisciplinares no Sistema de Justiça, de forma que possui atuação fundamental no Sistema de Garantia de Direitos e no atendimento a casos semelhantes ao que toma, nesse momento, a mídia. A Referência Técnica para Atuação de Psicólogas(os) na rede de proteção às crianças e adolescentes em situação de violência sexual (CFP, 2020) aponta que, segundo a
Organização Mundial de Saúde (OMS):
“a violência configura-se dentre um dos mais graves e sérios problemas de saúde pública, situação que atinge os países, independente do seu nível de desenvolvimento. A violência se configura como uma verdadeira epidemia ocorrendo de forma silenciosa, uma vez que se destacam alguns episódios, mas não se tem a percepção da dimensão total deste problema, que tem grande repercussão social, especialmente no setor Saúde” (pág 14)

Observando o referido contexto, a questão da violência sexual infanto-juvenil vem sendo pauta nas discussões dentro das políticas públicas, bem como entre os profissionais que trabalham no atendimento direto a esses casos, além de campanhas de mobilização como os eventos que marcam o dia 18 de maio como Dia de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.

Em 2013, foi publicado o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil – PNEVSCA (BRASIL, 2013). Uma construção que contou com a parceria entre sociedade civil e poder público, para formalizar o funcionamento e articulação dos diversos serviços das políticas intersetoriais para o melhor atendimento às crianças e adolescentes que passam por este tipo de violência. O Plano tem por objetivo implementar ações que assegurem a proteção integral destas crianças e adolescentes, além de ações de caráter preventivo.

O Conselho Federal de Psicologia, em matéria publicada em 18 de maio de 2022, destaca o cenário recente de isolamento social relacionado a pandemia da Covid 19, quando os casos de violência doméstica tiveram significativo aumento:
“Ao longo dos últimos anos, em especial no contexto da pandemia da Covid 19, a situação de violação de direitos de crianças e adolescentes tem se agravado. Dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) apontam que, entre 2017 e 2020, cerca de 180 mil crianças e adolescentes sofreram violência sexual no país, uma média de 45 mil por ano. A situação se agravou ainda mais com a pandemia de Covid-19, com aumento da pobreza, do desemprego e a fragilização dos serviços de proteção”.

Nesse contexto que nos deparamos com o caso recente que ainda se encontra em discussão pelo poder judiciário, em que uma criança, vítima de abuso chega a uma gestação e não consegue acessar o aborto legal, o que observamos é uma decisão judicial que se configura como violação de direitos humanos, revitimizando a criança em questão, ao invés de atendimento de modo digno, acaba por fazer seu julgamento de modo sumário. O abortamento de gestação decorrente de estupro é garantido pelo Código Penal, sendo um direito da mulher, o que se agrava quando se trata de uma criança.

A legislação brasileira permite o abortamento em três situações: anencefalia fetal, a gravidez que coloca em risco a vida da gestante e a gravidez que resulta de estupro. O aborto legal é um procedimento de interrupção de gestação ofertado pelo nosso Sistema Único de Saúde. Insta sinalizar que não é necessário apresentar Boletim de Ocorrência ou apresentar comprovante de crime, para a realização do procedimento basta o relato da vítima para a equipe de saúde. O Ministério da Saúde emitiu norma técnica (2005) que orienta e recomenda a composição de equipe multiprofissional composta por profissionais de psicologia, serviço social e médicas.

A continuidade da gestação traz questionamento sobre o atendimento a estes casos pela rede de saúde, e pelos demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos, entre os quais estão as instâncias decisórias judiciais e os operadores do Direito. A criança sofreu mais uma violência quando o procedimento lhe foi negado. Nesse sentido, no presente caso, conforme preconizado pelo ECA, a Rede de Proteção e Garantia de Direitos devem se nortear pela legislação e atuarem de forma a não acentuar, mas sim mitigar os danos psicossociais sofridos e evitar mais violações de direitos, incluindo os riscos a proteção e vida da criança.